
Quando o checador, Major Sergio me telefonou, ele até me pareceu um cara
razoável, legal. Aí ele, muito educadamente, me relembrou da necessidade
de fazer um vôo de recheque a cada dois anos. Ele até se ofereceu para
vir guiando até a minha fazenda, e fazermos o recheque na minha própria
pista. Naturalmente, eu aceitei.
Bom, ele apareceu na ultima sexta feira. Primeiro ele disse que estava
surpreso de ver o avião numa pistinha tão pequena ao lado da sede,
porque a pista homologada fica a mais ou menos 10 quilometros dali. Eu
expliquei que usava esta pistinha porque ela era muito mais perto do que
a homologada e, apesar das linhas de força que cruzam o meio dela, isso
não era um problema, porque nesse ponto da pista ou você já decolou ou
já pousou.
Eu não sei porquê, mas o Sergio parecia nervoso. Então, apesar de eu ter
feito a inspeção pré-vôo só 4 dias antes, eu decidi fazer tudo de novo.
Só porque ele estava me observando atentamente, eu dei duas voltas ao
redor do avião em vez de uma de costume. Meu esforço foi recompensado
porque, finalmente, a cor voltou ao rosto dele. De fato ele ficou até um
pouco vermelho.
Vendo que agora ele estava de bom humor, eu perguntei para ele se eu
podia aproveitar o recheque com um pouco de trabalho da fazenda, porque
eu tinha que levar três leitões que estavam perto da sede, até o pasto
do outro lado.
Depois de muito custo, finalmente, eu consegui caçar os três leitões e
joguei eles atrás do velho 172. Nós subimos a bordo, mas o Sergio
começou a me questionar sobre peso e balanceamento e toda essa
baboseira.
Claro que eu já ouvi falar dessa coisa. Mas eu sei que isso ai é perder
tempo porque os leitões não param quietos, principalmente quando
percebem que estão 500 pés acima do solo. Está na cara que não adianta
fazer peso e balanceamento porque não se consegue segurar eles. Então
falei pro Major Sergio não se preocupar porque eu sempre deixo o
compensador no neutro para ter certeza de que o avião fica estabilizado
a qualquer momento do vôo.
Bom, de qualquer forma, eu dei partida e, rapidamente, para diminuir o
tempo do motor esquentar, pisei forte nos freios e taquei 2.500 RPM. Foi
ai que eu descobri que o Sergio tinha um bom ouvido. Apesar de ele estar
com os fones de ouvido, e com o barulhão do motor, ele conseguiu
detectar umas batidinhas metálicas e quis saber o que era. (Na verdade
esse barulho começou há um mês atrás e é causado por uma chave de fenda
que caiu num buraco que tem no assoalho do avião e engastalhou na
seletora de combustível. Não dá para virar a seletora agora, mas acho
que não tem muito problema porque já que ficou travado em ambos, acho
que está ok)
De qualquer forma, como o Major era um chato, eu disse que o barulho era
de uma garrafa térmica de inox que eu sempre deixo no painel, entre o
pára-brisas e a bússola.
Acho que ele aceitou minha explicação porquê ele puxou o banco para trás
e ficou olhando fixamente para o teto da cabine.
Eu soltei os freios para taxiar, mas infelizmente o avião deu um tranco
e uma guinada para direita. Eu pensei: "porra, o amortecedor da direita
quebrou de novo!" O tranco deixou o Major esperto novamente. Ele olhou
assustado justo a tempo de ver uma pedra atirada pela hélice estilhaçar
o pára-brisas do seu Honda novinho. Eu pensei comigo: "agora to
encrencado"...
Enquanto o major estava ocupado olhando pro seu carro, eu ignorei seu
pedido de taxiar até a pista principal e decolei da pistinha mesmo, por
baixo das linhas de força. O major não disse uma palavra, bom, pelo
menos até quando o motor começou a ratear justo na hora de tirar o 172
do chão; aí ele começou a balançar a cabeça e falava, 'Ai meu Deus! Ai
meu Deus! Ai meu Deus!'
"Fica frio Major" eu falei firmemente. "Isso quase sempre acontece nas
decolagens, mas existe uma boa razão para isso".
Eu expliquei para ele, com toda paciência do mundo, que eu sempre uso
gasolina comum no avião, mas um dia, por acaso, eu coloquei um ou dois
galões de querosene. Para compensar a baixa octanagem do querosene eu
coloquei um pouco de gasolina azul aditivada, e balancei a asa para cima
e para baixo algumas vezes para misturar tudo. Depois dessa vez o motor
começou a ratear um pouco, mas normalmente ele trabalha bem, (isso se a
pessoa souber balançar direitinho).
De qualquer forma, a essa altura o major pareceu perder todo o interesse
no meu vôo. Ele tirou do bolso um rosário, fechou os olhos e começou a
orar (eu não imaginava que alguém nestes dias fosse tão católico). Aí,
eu coloquei uma música suave no rádio HF para ajudá-lo a relaxar.
Enquanto isso, fui subindo para minha altitude normal de cruzeiro: 8.500
pés. Eu normalmente não faço plano de vôo ou pego o Metar, porquê aqui
na fazenda você sabe que não tem essas coisas, e normalmente aqui está
cavok (mas desde que eu quase dei de frente com um Seneca, acho que
tenho que repensar melhor isso).
Bom, quando eu estava nivelando, eu vi lá embaixo um bando de porcos do
mato se dirigindo para o meu pasto novinho. Eu detesto esses bichos e
sempre levo uma 12 carregada no lado da porta do Cesnna para o caso de
eu ver esses malditos bichos. Nós estávamos muito alto para eu poder
acertá-los, mas por uma questão de princípios resolvi fazer uma curva
para ver melhor.
Amigo, quando eu saquei a 12, o efeito no Major foi feito um choque
elétrico. Conforme eu disparei o primeiro tiro o pescoço dele se alongou
uns 10 centímetros e os olhos dele pareciam os de um coelho com gripe.
Ele parecia ter tocado numa cerca elétrica com 100.000 volts. De fato a
reação dele foi tão violenta que eu perdi toda a concentração por um
instante, e o tiro seguinte acertou direto no pneu esquerdo. O major
parecia preocupado com os tiros (provavelmente era membro dessas
sociedades protetoras de animais); então, eu decidi não contar nada
desse nosso pequeno problema com o pneu.
Logo em seguida eu localizei a manada principal e decidi fazer meu
pequeno truque de piloto de caça. O major voltou a rezar baixinho. Aí,
eu, numa seqüência suave, dei full flap, cortei o motor e comecei a
glissar de 8.500 para 500 pés com uma velocidade indicada de 140 nós
(pelo menos a ultima vez que eu olhei estava) com a agulha do
velocímetro entrando na faixa vermelha. Que confusão! No meio da descida
eu olhei para trás da cabine para ver os 3 leitões graciosamente
suspensos no ar e urrando feito loucos.
Eu até ia comentar com o Major essa vista incomum, mas ele estava meio
verde, se enrolou na posição fetal e sua cabeça tremia.
A mais ou menos 500 pés eu tentei nivelar mas não sei porquê continuei
afundando. Quando chegou nos 50 pés eu dei full power mas nada
aconteceu, nem um barulho, nada. Aí, por sorte, eu lembrei da voz do meu
instrutor falando "ar quente do carburador, ar quente!". Então, eu puxei
o ar quente e isso funcionou porquê o motor finalmente reagiu. Putz,
deixa eu te contar, essa passou perto, bem perto!
Aí, amigão, você nem imagina o que aconteceu depois. Nessa altitude nós
entramos numa nuvem de poeira levantada pelo estouro da manada, e de
repente, entramos IFR. Amigão, vou te dizer, você ficaria orgulhoso de
mim porque nem cheguei a entrar em pânico, mas eu tomei nota mentalmente
de tirar uma carteira IFR, tão logo eu conserte meu giro direcional (já
estou pensando em consertá-lo faz uns dois anos).
De repente, o pescoço do Major se esticou de novo e os olhos
esbugalhados reapareceram. Ele abriu a boca, bem aberta, mas não saia
nenhum som. "Fica frio", eu falei para ele, "nós vamos sair dessa num
minuto". E foi o que aconteceu; um minuto depois nós emergimos da poeira
nivelados e ainda a 50 pés.
Vou te confessar uma coisa: aí quem se assustou fui eu, quando percebi
que estávamos no dorso. E continuei pensando comigo mesmo: "tomara que o
major não tenha percebido que eu esqueci de ajustar o QNH quando
estávamos taxiando". Esse pequeno incidente me forçou a voar para um
vale próximo aonde consegui fazer meio tunneau e ficar de cabeça para
cima de novo.
Nesse meio tempo a manada se dividiu em dois grupos, deixando uma trilha
estreita no meio deles. "Ah", eu pensei, "olha uma trilha. Vamos pousar
logo ali". Sabendo que o problema do pneu demandava uma aproximação
lenta eu fiz uma série de curvas com full flap. Ai a buzina de stall
tava tocando tão alto nos meus ouvidos que eu desliguei o disjuntor para
parar o barulho, mas então eu percebi que nós estávamos devagar mesmo,
já estolando. Fiz uma final duns 30 metros e joguei o avião no chão com
um baita tranco... Amigo, eu sempre tinha pensado que, para dar um
cavalo de pau, você tinha que ter um convencional, mas isso provou que
eu estava errado de novo.
No meio da nossa terceira virada, o Major finalmente recuperou seu senso
de humor. Vamos falar de risadas!
Eu nunca tinha visto nada assim. Ele não conseguia parar. Finalmente eu
soltei os leitões, que saíram correndo do avião desesperados.
Aí, eu desci e comecei a pegar chumaços de grama. O major não parava com
o acesso de riso, e perguntou o que eu estava fazendo. Eu expliquei que
estava recheando o pneu furado com grama para a gente poder voar de
volta para a sede. Foi aí que o Major perdeu a pose e começou a correr
para longe do avião. Dá para acreditar nisso? A ultima vez que eu o vi
ele estava balançando os braços e eu ainda ouvia sua risada (eu ouvi
dizer depois que ele foi internado num sanatório psiquiátrico). Pobre
homem!
De qualquer forma, amigo, chega de falar do Major. O problema é que eu
acabei de receber uma carta do DAC, cassando, (foi assim que eles
escreveram) minha licença de vôo, até que eu faça um curso completo de
piloto privado e um cheque de proficiência.
Bom, agora eu admito que errei em taxiar com o amortecedor quebrado e
não ter ajustado o QNH usando a elevação da pistinha, mas eu não vejo o
que fiz de tão errado para eles cassarem minha carteira. Você também não
acha?
Conto, então, com a sua ajuda para evitar que os homens do DAC cassem a
minha licença, ok?
Abração do amigo
Zé
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